sexta-feira, 21 de março de 2014

Texto para a exposição "Memórias à flor da pele" de Sofia Beça e Paulo Pimenta



Memórias à flor da pele


Mesmo que alguém fosse capaz de expressar tudo o que está no seu interior, não o conseguiríamos compreender.”1


Quatro anos depois de Escultura Cerâmica Hoje 5 autores portugueses e O Antes, o Durante e o Depois releio os textos que escrevi para exposições da Sofia Beça. O percurso continua a ser desenhado no esforço de ver respondida uma inquietação humana: Qual o melhor caminho?

Talvez pelas pedras da calçada com atenção às que se soltam ou deslocam do seu lugar; ou saltitando de telhado em telhado incerta da estrutura que o sustenta; ou, quem sabe, correr sem destino atenta à sensação do vento a tocar na nossa pele, que nos congela o rosto, enquanto o corpo liberta um calor que nos humedece.

Na ausência de representações miméticas, as manifestações plásticas da Sofia Beça ficam marcadas pela utilização da cerâmica e, nos últimos anos, pela conquista de um espaço no qual é evidente a crescente depuração, quer no tratamento da matéria, como na síntese formal.

A exposição Memórias à flor da pele transporta-nos para o que está simultaneamente longe e perto de nós ou para o modo como o passado pode ser ativado para o presente - que neste momento se torna, incontornavelmente, passado. Momentos da experiência vivenciada e acerca da qual fará sentido exaltar a intensidade ou dimensão que nos arrepia o corpo e nos abala a alma. A pele que, nos trabalhos da Sofia Beça, possui a expressividade de catarse, de purgação. Pele de texturas e tonalidades que sugerem pequenas explosões contidas, automatismos quotidianos, intermináveis repetições de gestos, ações organizadas, percursos e rotinas realizadas aqui, nesta terra, com a terra, com a argila que absorve, como nós próprios Absorvemos…

Memórias à flor da pele é igualmente título de uma obra em parceria com o Paulo Pimenta. Duas reflexões sobre o si - self - de estrutura não-linear e não cronológica que resultam numa espécie de diálogo espelhado onde se gravam registos fragmentados através e entre os quais nos poderemos encontrar ou reencontrar. Uma escrita a duas mãos que no trabalho do Paulo Pimenta é sempre entendida como um momento de partilha.

As suas fotografias são como mergulhos profundos, discretos, complexos e silenciosamente perturbadores. Partilhas do sentir pelo ver e que, bem distinto do olhar desatento do quotidiano contemporâneo, se cravam em nós. São viagens de, pela e sobre vida - pelos tempos e pelos lugares dos nossos mais diversos eus. São corpos que encarnam personagens e que espelham fantasias, fantasmas, o agridoce dos momentos, dos seres humanos, de lugares mais próximos ou mais distantes, inquietando os nossos mais íntimos segredos e medos.

Assim, exprimem-se sentimentos tão diferenciados e tão próximos como a paixão ou a mágoa, o amor ou a perda, sensações e emoções que de tão silenciosamente se conterem parecem aproximar-se da implosão.
Qual será o melhor caminho?

Talvez encontremos resposta caminhando…, “desenhando e esculpindo a diferentes ritmos, velocidades… sem pressa, mas em direcção a um objectivo agradável (Rousseau, Jean-Jacques, 1712-1778) no qual o tempo e a maneira como se desfruta dele,

sem saber o que sucederá após o passo seguinte, estimula-nos a prosseguir.

Passeando, correndo, parando, avançando em direcção a… seguimos e/ou somos seguidos,

tropeçamos, por vezes, caímos e reerguemo-nos…

sentimos e somos sentidos, observamos e somos observados, ouvimos e somos ouvidos, entendemos e somos entendidos umas vezes mais ou melhor e outras vezes menos ou pior… emocionamo
nos e emocionam-nos 2.


Rute Rosas

                                                                                                                                      
Fevereiro, 2014

1 WITTGENSTEIN, Ludwig, in Últimos Escritos Sobre a Filosofia da Psicologia, tradução: António Marques, Nuno Venturinha e João Tiago Proença, Edição da Fundação Calouste Gulbenkian, Serviço de Educação e Bolsas, Lisboa, 2007, p. 91.


2 ROSAS, Rute, fragmento de texto a propósito da intervenção, Caminhando..., 2010, in Autocensura como Agente Poético Processual da Criação Escultórica- Projectos, Processos e Práticas Artísticas- Tese/Obra, FBAUP, 2011, P.46 e Http://www.ruterosas.com/pt/works/caminhando/

Sem comentários: